Depoimento sobre Zé Dirceu
Escrevi o depoimento a seguir há alguns anos. Nele, vesti o personagem de militante de esquerda, que outrora já fui, com ideais e sonhos românticos de uma sociedade perfeita. Hoje sou pragmático; não tenho mais nenhuma ilusão de esquerda. Aprendi que os “porões da ditadura” - que me disseram ser a porta do inferno - guardavam segredos que incomodam muito mais aos ditos heróis perseguidos, que aos seus “algozes perseguidores”. Quando se olha para corpos mutilados, cheios de balas, cabeças despedaçadas, não tem como esquecer e não sentir repulsa, ainda mais se é de gente comum que os “heróis” diziam defender em nome da liberdade. Vi isso e muito mais, mas quem vai nos ouvir, se agora aqueles que são calados somos nós, que lutamos contra os que chamávamos de terroristas? Quem vai se lembrar do nome do cobrador de ônibus morto pelas ALNs e VPRs da vida?
Mas alguns se lembram, Zé. O camarada Valdemar está vivo e se lembra de você! Muita gente ainda se lembra de você se exibindo para os jornais, carregando o corpo do estudante morto na rua Maria Antônia. Zé, Vinhedo e Ibiúna ainda estão na memória de quem recebeu os telefonemas e fotos! Zé, o Grupo Primavera, que foi dizimado, continuará sendo lembrado como tendo apenas dois sobreviventes: você e outra militante e que ela não abriu os “pontos”.
Zé, quem é você afinal?
Segue um desabafo escrito em um momento de angústia e raiva:
Luta Desarmada - Traindo a nós mesmos
Os anos passam, mas o passado e o presente se confundem nas esquinas de nossas vidas. Vidas que se entrelaçam com a própria história do País e nos levam a conhecer pessoas que um dia foram heróis e, em outro, traidores de nossas causas. Por esses acasos da vida, cai em nossas mãos fatos que para muitos é de surrealismo puro, porém, aos que viveram o submundo da política brasileira, são naturais e já não surpreendem. Nessas idas e vindas, conheci o companheiro Valdemar, ex-militante da AP – Ação Popular, grupo originário da JUC – Juventude Universitária Católica, atuantes nos anos 60 e estraçalhados nos anos que se seguiram.
Valdemar foi um dos organizadores do Congresso de Vinhedo, o último congresso de estudantes, do qual os governos militares não tiveram como obter informações antecipadas e abortá-los. Corria o ano de 1967 e as lideranças da UNE – União Nacional dos Estudantes preparava seu congresso. Valdemar foi um desses jovens e foi dele a idéia de realizar o encontro no lugar menos provável aos olhos e ouvidos do regime militar: um convento beneditino cisterciense na cidade paulista de Vinhedo.
Valdemar preparou tudo com organização extrema. Incumbido da segurança do congresso, baixou regras de comportamento rígidas e montou um sistema de chegada em Vinhedo digno das cartilhas das células bolcheviques da Rússia revolucionária. O companheiro conta-me detalhes e é possível imaginar a audácia de suas ações.
Entre os estudantes, um se destacará um ano após este congresso: Zé Dirceu. Para provocar os militares, mostrando que estes eram vulneráveis em sua rede de informações, Zé Dirceu divulgará uma foto em que vários outros jovens estudantes aparecem participando deste congresso. Porém, entre os participantes, dez jovens se tornariam suspeitos de serem ligados aos “órgãos de repressão”, sendo que apenas um, dentre todos os participantes, realmente o era.
O sistema do companheiro Valdemar e seus amigos foi tão eficiente que o agente infiltrado não pôde dar informações sobre o congresso, muito menos sua localização, mas Zé Dirceu, que não era agente do regime, fez o serviço por ele. Na foto por ele divulgada, havia um detalhe: uma cruz, reconhecida pelos agentes da repressão, que os levou direto ao convento onde havia sido realizado o congresso de Vinhedo. Porém, não seria desta vez que os estudantes pagariam o preço que seria cobrado em 1968. Valdemar conta que a foto o tornou inimigo de Zé Dirceu e, no ano seguinte, a discordância entre ambos foi muito além. Zé Dirceu planejou realizar o novo congresso em um sítio, em Ibiúna. Valdemar foi contra, pois não havia como garantir a segurança dos estudantes no local escolhido.
Mas Zé Dirceu não queria segurança... Em seus planos estava a prisão de todos, pois julgava que, ao prender tantos jovens, o regime militar se desmoralizaria perante a sociedade, e tal fato iria insuflar os estudantes por todo o País. O Congresso de Ibiúna estava fadado ao fracasso desde o seu planejamento, fracasso e dor para setecentos jovens, entre eles muitos que jamais veriam a liberdade novamente. Outros, ficaram marcados e foram perseguidos, mortos ou presos novamente, amargaram o exílio. Setecentos jovens! Moeda de troca para a fama de Zé Dirceu, que deixou vazar tudo sobre o congresso para os militares... Nem os agentes fariam melhor!
Valdemar, que não foi a Ibiúna, rachou com o grupo e, como tantos, foi tachado de “desbundado”. Já em 1982, diante de Zé Dirceu - ele de camisa barata, calça de tergal e sandálias (creio que havaianas) – observo o herói de Ibiúna, o guerreiro da Rua Maria Antônia! Zé chama Airton Soares, advogado e conhecido militante do PT, e dá-lhe instruções para cobrir a ação daquela noite: caso algo não previsto ocorresse, deveria salvar as peles daqueles jovens, antes que fossem convidados como hóspedes em algum dos hotéis cinco estrelas do regime.
Lá estavam eles, orgulhos, com suas estrelinhas do PT, cujo preço era vinte e cinco centavos - feitas de plástico vagabundo e silcadas - não como as de hoje, de metal e caras. Anos depois, eu iria rever Zé Dirceu, em um terno bem talhado, já como Deputado Estadual, porém, agora já em lados opostos de ideologia e crenças, mas alguém a quem eu ainda respeitava. Neste momento, diversas pessoas chamam Zé Dirceu de corrupto. Não creio nisso. Seu ego é muito grande para se vender por apenas um punhado de dólares! Não é homem de carregar dinheiro em suas partes íntimas, embora o tenha sido para carregar uma arma ou uma idéia, mesmo que estas levassem à prisão setecentos jovens.
Zé Dirceu é mais um que traiu a si mesmo quando colocou a causa acima da vida humana. Neste ponto, qualquer um que foi militante nos anos de chumbo, tornou-se traidor de si mesmo. Algum dia será necessário que se julguem muitos pelo que causaram aos que pretendiam dirigir em nome da classe operária. Traídos pelos ideais, odiaram, amaram e não entenderam que não foram melhores que os algozes do regime. Ao mandarem seus companheiros para o matadouro ou a obedecer cegamente ordens de seus dirigentes, esqueceram seus lados humanos. Fomos materialistas dialéticos, mas não éticos! Zé Dirceu nunca foi humilde, mas fruto de uma arrogância que forjou em várias mentes a idéia de que eram melhores do que o gado apático que não ousava lutar contra o canhão.
Valdemar hoje vive em paz com seu dever cumprido. Já Zé Dirceu, tem setecentos jovens a quem deve desculpas por sua manobra para alçar o altar dos heróis da esquerda brasileira. Talvez eu mesmo devesse agradecer por não ter sido mais uma das vítimas das ações de líderes delirantes, para os quais as vidas são descartáveis. A revolução precisava de heróis mortos, presos ou exilados! Resta ainda à história desvendar os mistérios por detrás da morte dos membros do Grupo Primavera, um capítulo muito mais obscuro da personalidade de Zé Dirceu. Vale a pena lembrar que entre seus codinomes estava o de “Daniel”, o mesmo utilizado pelo “Cabo” Anselmo e muitos outros agentes infiltrados. Estes últimos, mantendo a sua dignidade, hoje nada têm do que se envergonhar, pois combateram diretamente na cova dos leões, sem macular suas vidas com traições e fatos obscuros como o de Zé ou o Anselmo, o primeiro, um leão em pele de cordeiro, o segundo um homem marcado por suas próprias desilusões e angústias. Sabiam exatamente a qual lado pertenciam.
Zé Dirceu é dos heróis presos e exilados; Valdemar não se julga herói, foi preso muitas vezes, mas não traiu seus ideais de juventude em troca da fama. Valdemar preferiu “fazer história e não passar para a história”. E eu? Apenas um transeunte das esquinas da vida, coletando as histórias do passado deste País que ainda não foram contadas, mas, que se fazem necessárias para que um dia não se diga onde estavam os que sabiam a verdade e se calaram.
Codinome “Daniel”
Escrevi o depoimento a seguir há alguns anos. Nele, vesti o personagem de militante de esquerda, que outrora já fui, com ideais e sonhos românticos de uma sociedade perfeita. Hoje sou pragmático; não tenho mais nenhuma ilusão de esquerda. Aprendi que os “porões da ditadura” - que me disseram ser a porta do inferno - guardavam segredos que incomodam muito mais aos ditos heróis perseguidos, que aos seus “algozes perseguidores”. Quando se olha para corpos mutilados, cheios de balas, cabeças despedaçadas, não tem como esquecer e não sentir repulsa, ainda mais se é de gente comum que os “heróis” diziam defender em nome da liberdade. Vi isso e muito mais, mas quem vai nos ouvir, se agora aqueles que são calados somos nós, que lutamos contra os que chamávamos de terroristas? Quem vai se lembrar do nome do cobrador de ônibus morto pelas ALNs e VPRs da vida?
Mas alguns se lembram, Zé. O camarada Valdemar está vivo e se lembra de você! Muita gente ainda se lembra de você se exibindo para os jornais, carregando o corpo do estudante morto na rua Maria Antônia. Zé, Vinhedo e Ibiúna ainda estão na memória de quem recebeu os telefonemas e fotos! Zé, o Grupo Primavera, que foi dizimado, continuará sendo lembrado como tendo apenas dois sobreviventes: você e outra militante e que ela não abriu os “pontos”.
Zé, quem é você afinal?
Segue um desabafo escrito em um momento de angústia e raiva:
Luta Desarmada - Traindo a nós mesmos
Os anos passam, mas o passado e o presente se confundem nas esquinas de nossas vidas. Vidas que se entrelaçam com a própria história do País e nos levam a conhecer pessoas que um dia foram heróis e, em outro, traidores de nossas causas. Por esses acasos da vida, cai em nossas mãos fatos que para muitos é de surrealismo puro, porém, aos que viveram o submundo da política brasileira, são naturais e já não surpreendem. Nessas idas e vindas, conheci o companheiro Valdemar, ex-militante da AP – Ação Popular, grupo originário da JUC – Juventude Universitária Católica, atuantes nos anos 60 e estraçalhados nos anos que se seguiram.
Valdemar foi um dos organizadores do Congresso de Vinhedo, o último congresso de estudantes, do qual os governos militares não tiveram como obter informações antecipadas e abortá-los. Corria o ano de 1967 e as lideranças da UNE – União Nacional dos Estudantes preparava seu congresso. Valdemar foi um desses jovens e foi dele a idéia de realizar o encontro no lugar menos provável aos olhos e ouvidos do regime militar: um convento beneditino cisterciense na cidade paulista de Vinhedo.
Valdemar preparou tudo com organização extrema. Incumbido da segurança do congresso, baixou regras de comportamento rígidas e montou um sistema de chegada em Vinhedo digno das cartilhas das células bolcheviques da Rússia revolucionária. O companheiro conta-me detalhes e é possível imaginar a audácia de suas ações.
Entre os estudantes, um se destacará um ano após este congresso: Zé Dirceu. Para provocar os militares, mostrando que estes eram vulneráveis em sua rede de informações, Zé Dirceu divulgará uma foto em que vários outros jovens estudantes aparecem participando deste congresso. Porém, entre os participantes, dez jovens se tornariam suspeitos de serem ligados aos “órgãos de repressão”, sendo que apenas um, dentre todos os participantes, realmente o era.
O sistema do companheiro Valdemar e seus amigos foi tão eficiente que o agente infiltrado não pôde dar informações sobre o congresso, muito menos sua localização, mas Zé Dirceu, que não era agente do regime, fez o serviço por ele. Na foto por ele divulgada, havia um detalhe: uma cruz, reconhecida pelos agentes da repressão, que os levou direto ao convento onde havia sido realizado o congresso de Vinhedo. Porém, não seria desta vez que os estudantes pagariam o preço que seria cobrado em 1968. Valdemar conta que a foto o tornou inimigo de Zé Dirceu e, no ano seguinte, a discordância entre ambos foi muito além. Zé Dirceu planejou realizar o novo congresso em um sítio, em Ibiúna. Valdemar foi contra, pois não havia como garantir a segurança dos estudantes no local escolhido.
Mas Zé Dirceu não queria segurança... Em seus planos estava a prisão de todos, pois julgava que, ao prender tantos jovens, o regime militar se desmoralizaria perante a sociedade, e tal fato iria insuflar os estudantes por todo o País. O Congresso de Ibiúna estava fadado ao fracasso desde o seu planejamento, fracasso e dor para setecentos jovens, entre eles muitos que jamais veriam a liberdade novamente. Outros, ficaram marcados e foram perseguidos, mortos ou presos novamente, amargaram o exílio. Setecentos jovens! Moeda de troca para a fama de Zé Dirceu, que deixou vazar tudo sobre o congresso para os militares... Nem os agentes fariam melhor!
Valdemar, que não foi a Ibiúna, rachou com o grupo e, como tantos, foi tachado de “desbundado”. Já em 1982, diante de Zé Dirceu - ele de camisa barata, calça de tergal e sandálias (creio que havaianas) – observo o herói de Ibiúna, o guerreiro da Rua Maria Antônia! Zé chama Airton Soares, advogado e conhecido militante do PT, e dá-lhe instruções para cobrir a ação daquela noite: caso algo não previsto ocorresse, deveria salvar as peles daqueles jovens, antes que fossem convidados como hóspedes em algum dos hotéis cinco estrelas do regime.
Lá estavam eles, orgulhos, com suas estrelinhas do PT, cujo preço era vinte e cinco centavos - feitas de plástico vagabundo e silcadas - não como as de hoje, de metal e caras. Anos depois, eu iria rever Zé Dirceu, em um terno bem talhado, já como Deputado Estadual, porém, agora já em lados opostos de ideologia e crenças, mas alguém a quem eu ainda respeitava. Neste momento, diversas pessoas chamam Zé Dirceu de corrupto. Não creio nisso. Seu ego é muito grande para se vender por apenas um punhado de dólares! Não é homem de carregar dinheiro em suas partes íntimas, embora o tenha sido para carregar uma arma ou uma idéia, mesmo que estas levassem à prisão setecentos jovens.
Zé Dirceu é mais um que traiu a si mesmo quando colocou a causa acima da vida humana. Neste ponto, qualquer um que foi militante nos anos de chumbo, tornou-se traidor de si mesmo. Algum dia será necessário que se julguem muitos pelo que causaram aos que pretendiam dirigir em nome da classe operária. Traídos pelos ideais, odiaram, amaram e não entenderam que não foram melhores que os algozes do regime. Ao mandarem seus companheiros para o matadouro ou a obedecer cegamente ordens de seus dirigentes, esqueceram seus lados humanos. Fomos materialistas dialéticos, mas não éticos! Zé Dirceu nunca foi humilde, mas fruto de uma arrogância que forjou em várias mentes a idéia de que eram melhores do que o gado apático que não ousava lutar contra o canhão.
Valdemar hoje vive em paz com seu dever cumprido. Já Zé Dirceu, tem setecentos jovens a quem deve desculpas por sua manobra para alçar o altar dos heróis da esquerda brasileira. Talvez eu mesmo devesse agradecer por não ter sido mais uma das vítimas das ações de líderes delirantes, para os quais as vidas são descartáveis. A revolução precisava de heróis mortos, presos ou exilados! Resta ainda à história desvendar os mistérios por detrás da morte dos membros do Grupo Primavera, um capítulo muito mais obscuro da personalidade de Zé Dirceu. Vale a pena lembrar que entre seus codinomes estava o de “Daniel”, o mesmo utilizado pelo “Cabo” Anselmo e muitos outros agentes infiltrados. Estes últimos, mantendo a sua dignidade, hoje nada têm do que se envergonhar, pois combateram diretamente na cova dos leões, sem macular suas vidas com traições e fatos obscuros como o de Zé ou o Anselmo, o primeiro, um leão em pele de cordeiro, o segundo um homem marcado por suas próprias desilusões e angústias. Sabiam exatamente a qual lado pertenciam.
Zé Dirceu é dos heróis presos e exilados; Valdemar não se julga herói, foi preso muitas vezes, mas não traiu seus ideais de juventude em troca da fama. Valdemar preferiu “fazer história e não passar para a história”. E eu? Apenas um transeunte das esquinas da vida, coletando as histórias do passado deste País que ainda não foram contadas, mas, que se fazem necessárias para que um dia não se diga onde estavam os que sabiam a verdade e se calaram.
Codinome “Daniel”
Aaaah, PT!
ResponderExcluirÉéééh, PT!
Iiiih, PT!
Óóóóh, PT!
UuuuH, PT!
Ao "Seu" Zé, que teve a sorte imensa de nunca ter sido torturado (por que será?), aí vai o meu
Ai...ui...toma, distraído!